“Voltei da igreja com o Blues. Joguei-me sobre meu leito e pela primeira vez, desde que cheguei aqui, me senti muito triste e muito miserável.” Esse é o primeiro registro do termo Blues feito no diário de Charlotte Forten, em 1862, na Carolina do Sul. Quando você se depara com “Pecadores” (“Sinners”, no original), filme do ótimo Ryan Coogler (“Pantera Negra”), e percebe que todos aqueles personagens negros estão nas plantações de algodão, em Clarksdale, no Mississipi, no início do século XX, você sabe que está diante de um filme importante.

“Pecadores”, sobretudo é um filme sobre persistir
O terror de Coogler estrutura muito bem a sua história, quando começa com um fragmento de cena, que só voltaremos ver no final da película, que tem um desenrolar forte, o que já prova que o filme é até profundo, mas não quer mexer só com a sua mente, quer realmente te causar medo.
Coogler não foge as configurações dos tradicionais filmes de terror, ele só se diferencia em “Pecadores” por dois grandes motivos: Atuação e Música. Os Estados Unidos do início do Século XX,

era altamente segregado e os estados do Sul, mais agrícolas, ainda tinham muitos escravos ou ex-escravos que tentavam seguir a sua vida, e é essa a visão que o diretor tenta passar: Esse é um filme de negros que resistem e estão dispostos a persistir pelos seus sonhos.
O filme tem uma ambientação bem característica, vai bem no visual, na sua fotografia e principalmente no seu jogo de cenas, não deixando que ele caia, em nenhum momento, na mesmice ou se torne tedioso. A trilha de Ludwig Göransson, vencedor do Oscar por “Oppenheimer” é um show a parte.
Leia também: Nosferatu é o gótico renascido por Robert Eggers | Crítica
Michael B. Jordan é a chave para o sucesso do longa
A despeito de sua cena inicial, que dá o tom do filme, ou ao menos não nos deixa esquecer que esse não é um filme de Spike Lee ou de Steve McQueen (mas poderia ser), Coogler estrutura bem a sua história.
O protagonismo do filme é dividido. Ou não. Michael B. Jordan é uma unanimidade, e pelas lentes de Coogler, ele se agiganta. Após as parcerias de sucesso em “Pantera Negra” e os filmes “Creed”, Jordan agora não volta para um, mas para dois personagens, o que surpreendeu boa parte da audiência. Coisa que o trailer de “Pecadores” fez muito bem: Instigar, mas não revelar.

Miles Caton surpreende com talento em seu primeiro papel
Jordan e seus Fumaça (Elijah, no original Smoke) e Fuligem (Elias, chamado de Stack), são dois irmãos que tentaram a sorte no Norte do país, e voltaram dispostos a abrir uma Clube de Blues. E aqui, reencontramos a música que preenchou a vida de tantos afro-americanos durante períodos tão difíceis. Miles Caton, como o Pastorzinho Sammie, em seu papel de estreia, nos entrega uma das melhores cenas musicais do cinema dos últimos tempos.
Em um plano sequência lento, mas que progride e se expande com novos elementos, entendemos como a música conectava, e ainda conexta, os negros com algo muito maior, com a sua ancestralidade, história, com a sua casa. Ritmos, memórias, heranças e até o futuro musical do Blues, nos releva o quanto a transformação que a música sofreu, jamais a destruiu. E mais, nos manteve vivos.
E aí o filme muda.

Filme tem um elenco “de primeira”
Em uma incursão perigosa ao sobrenatural, mas com uma explicação absolutamente plausível, Coogler, conduz uma trama vampiresca, de muita tensão e terror para seus espectadores, e é aqui que acontece a magia do diretor junto a M. B. Jordan. Seus personagens ganham

caminhos diferentes, e Jordan, que já os diferenciava bem, em trejeitos, humor e comportamento, ganha a tela ao transformar seu Smoke/Elijah, em um anti-herói e seu Stack/Elias em um personagem ainda mais debochado e livre.
Os personagens de Jordan, tem essas particularidades, mesmo que com os mesmos objetivos, um é mais centrado, técnico e explosivo, enquanto o outro mais divertido, livre e impulsivo. Ao lado de coadjuvantes de luxo, como o próprio Caton, brilham também Omar Benson Miller (Broa de Milho), Jayme Lawson (Pearline), Delroy Lindo (como o ótimo Delta Slim), Wunmi Mosako (Annie) e até mesmo Hailee Steinfeld (Mary).
Terror bem realizado no ápice da produção
Todos bem dirigidos, no tom de seus personagens e de seus dramas. Com a adição da trama dos vampiros, Coogler poderia ter se perdido, mas ao invés de destacar o filme do Blues e de sua veia musical, ele incorpora. Os vampiros, encabeçados por Jack O’Connell, em interpretação muito segura, se apaixonam pela melodia do Pastorzinho Sammie e da conexão dela com todo o sobrenatural.

A partir daí, o filme começa a se tornar um terror escancarado, com a mensagem clara de que nenhum dos propósitos conhecido até aquela parte do filme, são gratuitos. São personagens com problemas conjugais, com bebida, lindando com luto, ou até consigo mesmo. Todos querendo uma noite para se divertir, mas de cara com a face da morte. E um a um, eles são “convertidos”. O apagamento racial é plano de fundo para a história, onde vampiros brancos, estão extasiados pela música dos negros, e querem se apropriar dela, e não de uma forma “muito católica”.
Segredo torna o filme ainda mais épico
Jordan e Caton engolem a fase final do filme, ao longo da perda de personagens importantes e das sequências de luta muito bem ensaiadas e dirigidas. A tensão aumenta e logo temos uma quase definição da história.

A música é viva no personagem de Miles Caton, e ele não consegue renegá-la mesmo após tudo o que passou naquela noite no Clube.
E o futuro reserva mais do que sucesso, revela um segredo, que até então estava guardado, mas que surge na tela como um recado para ambos os públicos: o da Música e do Terror: Nada pode determinar o fim de algo, quando você tem um propósito verdadeiro.
Filme marca a história do terror no cinema
“Pecadores” é uma das maiores estreia do ano, e deve fazer barulho com críticos e mídia, por ser um filme que reinventa o terror, ao dar motivação e antes de mais nada construir boas histórias e dramas difíceis para personagens devidamente profundos. Isso tudo bem antes de começar a nos dar sustos. Uma lição em forma de longa-metragem que só Ryan Coogler poderia encabeçar.