Não parece fortuito que o primeiro ato de Tempos de Barbárie tenha sua estreia marcada para poucos dias após notícias recorrentes sobre crianças sendo vítimas de violência armada durante ações policiais na Ilha do Governador (RJ), chegarem à mídia. Contudo, este é, na verdade, um infeliz retrato da realidade que acomete, sobretudo, a periferia brasileira – segundo dados levantados pela Sociedade Brasileira de Pediatria em 2019, a cada 60 minutos, uma criança ou um adolescente morre no Brasil em decorrência de ferimentos por arma de fogo.
Com um pano de fundo muito bem estabelecido, Tempos de Barbárie: Terapia da Vingança busca explorar a dita barbárie da sociedade brasileira através das lentes de uma família acometida por uma tragédia após um assalto. Carla (Claudia Abreu) inicia uma jornada de decadência depois de perder a filha pequena na ocasião, e dessa maneira o filme se propõe a trabalhar o velho dilema da vingança com Carla sendo a protagonista de uma fantasia obscura da qual, especialmente nos últimos anos, vemos grande parte da sociedade compartilhar. Mas fica o questionamento levantado no próprio longa: onde a violência começa? Com o autor dos tiros? Com o vendedor de armas? O fabricante? Em um primeiro momento, Tempos de Barbárie nos leva a crer que levará este debate mais a fundo do que realmente o faz, já que seu foco principal na verdade é explorar a escalada de ódio na qual a protagonista embarca, mas que mesmo assim, não é tão tridimensional quanto se espera.
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Ainda que esta seja uma produção com apelo social, o roteiro co-escrito por Marcos Bernstein – que também assina a direção – não se compromete a integrar tão bem a pauta sobre armamento ao discurso do filme, uma vez que a escolha de não discutir questões de classe, economia e raça, deixa claro que a intenção primária do texto é apresentar a barbárie que persegue o desejo de vingança de forma central. Assim, questões timidamente mencionadas durante a história, seriam contextos para que o horror na decadência de Carla fosse a catarse principal da obra, mas mesmo nisso o longa tem um desempenho superficial.
O desenvolvimento estrutural da história peca pontualmente ao superestimar a nossa suspensão da descrença, só que é o desenvolvimento temático e discursivo da obra que carrega sua maior deficiência. Ao escolher as facilidades que uma protagonista de classe alta oferece, o filme já demonstra que sua preocupação maior é permitir que Carla seja levada às mais sombrias situações que uma pessoa movida pelo ódio poderia se encontrar, mas é justamente o desvio do debate estrutural sobre a violência armada que pode fazer com que ela seja interpretada como anti-heroina, pois a forma com que a jornada de sofrimento e vingança da Carla é narrada, sem pontuar os pilares das problemáticas sociais, gera a insinuação que suas ações podem ser mais aceitáveis nesse ciclo de violência do que se espera de um debate sério sobre a questão – algo que não acontece com The Last Of Us Part II, por exemplo. Uma história sobre vingança na qual mesmo apegados às protagonistas, sentimos inegável repulsa de suas ações violentas por também sermos apresentados de maneira muito próxima, à sua ineficiência e às consequências que elas causam.
A melhor virtude de Tempos de Barbárie fica a cargo da esfera técnica, pois é realmente capaz de criar uma atmosfera de tensão e impacto através de escolhas assertivas de mixagem de som e montagem – ainda que neste tópico haja certos “maneirismos” um tanto quanto deslocados do bom equilíbrio entre disrupção da técnica e objetivo real da mensagem.
Com escolhas bem feitas, mas que apenas arranham a superfície do desenvolvimento que se propõe a realizar, Terapia da Vingança deve ser o primeiro de uma trilogia de “Atos” independentes que irão explorar a barbárie na qual nosso país está inserido em diversos setores sociais, políticos e estruturais. Resta aguardar para conferir se as próximas narrativas de Tempos de Barbárie, vão elevar a qualidade do seu discurso para um patamar de reflexão mais pragmático do que o que foi feito até aqui.