É 2024. O Brasil inteiro está encantado com a personificação, em forma de licença poética e cinéfila, de Nossa Senhora Aparecida, interpretada por Taís Araújo. O Filme? “O Auto da Compadecida 2”, de Guel Arraes e Flávia Lacerda, que estreia no final do ano, e vai encantar Deus e o Mundo com o retorno de João Grilo e Chicó, feitos de maneira indiscutível por Matheus Nachtergaele e Selton Mello, respectivamente. Mas quando um menino de 9 anos sentou na frente da TV e viu um João Grilo ajoelhado e dizendo:
“Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, agora sou escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré!”
Não foi Taís quem apareceu.
A Pluralidade de Fernanda Montenegro
Essa foi minha primeira experiência afetiva com Fernanda Montenegro. Atriz de traços finos e interpretação sincera e didática, Fernanda é a tradução do talento em múltiplas facetas. Seja com Matheus Nachtergaele, Paulo Autran, Tony Ramos, Cláudia Abreu, Nathália Timberg, e tantos outros… ela consegue dar espaço para todos. Para quem atua com ela, ou para quem a observa da platéia.
Esse menino, escutou com atenção cada fala “daquela Nossa Senhora” e depois, percebeu que era a mesma que tinha visto em um dos filmes mais marcantes do Cinema Brasileiro: “Central do Brasil”, de Walter Salles. Tudo em “O Auto da Compadecida”, esse de 2000, dirigido pelo mesmo Arraes, é poesia. Nordestina. Brasileira. É talento destilado em diálogos cantados e rimados, que ficaram na memória do povo brasileiro.
A estreia ocorreu com apenas 15 anos de idade
Fernanda Montenegro, nascida Arlette Pinheiro Esteves da Silva, no Rio de Janeiro, à época Distrito Federal, em 16 de Outubro de 1929, completa 95 anos na data de hoje. De uma educação teatral, onde estreou no Teatro aos 20 anos, ao lado do marido, Fernando Torres, encenando a peça “Alegres Canções nas Montanhas”, de Julian Luchaire. No rádio, o maior meio de comunicação e entretenimento do início do Século XX, estreara 5 anos antes, na radionovela “Nuestra Natacha”, em um texto original do espanhol Alejandro Casona.
No entanto, nessa época, esse que vos escreve, nem imaginava em nascer. Portanto, meu contato com o trabalho de Fernanda Montenegro veio mais à frente. Depois de encarnar Nossa Senhora e uma ex-professora que escreve cartas para pessoas analfabetas em “Central do Brasil”, de Walter Salles, Fernanda foi uma das maiores vilãs da televisão, em uma obra de Silvio de Abreu, “Belíssima”, novela do horário nobre global. Bia Falcão, personagem de alta classe social, mas tão cruel quanto refinada, destilava seu ódio pelas classes mais carentes, com tiradas que até hoje, fazem o brasileiro enaltecer o trabalho da atriz. Quem não lembra de:
“Pobreza pega, pega como sarna, pega como um vírus, entra pela pele pela respiração, eu controlo minha respiração, eu prendo o meu ar sem querer, não toco em nada pra não me contagiar, nada. E os biscoitinhos? Tem os biscoitinhos daquela pobre diaba daquela empregada, são letais, letais resistentes a qualquer antídoto. Eu não sei como não morri!”
Um texto magnífico de Silvio de Abreu, interpretado de forma espetacular por Montenegro. Na cena, um Ítalo Rossi, gigantesco, observou tudo encantado, e sem sair do personagem.
Gigantesca na TV mesmo em décadas distantes
Mas aos meus olhos adolescentes, e depois disso, adultos, pude rever diversos trabalhos de Fernanda, como a Charlô de “Guerra do Sexos”, sucesso às 7 da noite em 1983, em dobradinha imperdível com Paulo Autran. Uma das cenas dos dois, é uma das mais antológicas da TV Brasileira, do café da manhã, onde Bimbo e Cumbuca arremessam quitutes um contra o outro. Impagável. A Jacutinga de “Renascer”, em 93, e Lulu Luxemburgo, da fracassada “As Filhas da Mãe”, em 2001, também são provas de que mesmo em produtos com alcance comercial e crítico diferentes, Montenegro brilhou. Já em “O Outro Lado do Paraíso”, novela em que fez inteira, em 2017, Mercedes, sua personagem, enfrentou a própria morte, de igual para igual, em uma cena de um monólogo inteligente e muito bem dirigida. Só ela mesmo pra conseguir essa proeza de enfrentar o fim.
Uma Indicação ao Oscar e um Emmy Internacional
O cinema pode não ter reservado tantos outros papéis de destaque para a atriz, mas em 2024, mesmo com os holofotes voltados para a filha, Fernanda Torres, que brilha em “Ainda Estou Aqui”, Montenegro também aparece, onde interpreta também uma versão de Euníce Paiva, e eu consigo encarar uma alusão clara ao título da produção. Ela está lá, sendo exibida nos festivais do mundo todo, vendo a produção e a prole ser premiada, em reparação histórica, para todo e qualquer brasileiro, ao Oscar de 1999, quando “Fernandona”, como também é chamada, perdeu o principal prêmio de Melhor Atriz para Gwyneth Paltrow. Mas ainda assim, ela ainda está aqui.
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A parceria com a filha, Fernanda Torres, não é a primeira. Em 2005, as duas estrelaram 3 gerações de mulheres de personalidade, com “Casa de Areia”, de Andrucha Waddington. Filme forte, onde as mudanças de tom, nuances e olhar de cada personagem interpretado pelas duas era completamente independente e perceptível. Não satisfeita, Fernanda Montenegro ainda venceu um Emmy Internacional em 2013, pelo papel como Dona Picucha, no especial “Doce de Mãe”, de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado. Fernanda Montenegro se tornou a primeira atriz brasileira a vencer o prêmio.
Recitando Beauvoir para 15 mil pessoas no Ibirapuera
Sem trabalhos previstos para a TV, mas com diversos tributos e homenagens para onde se olhe, Fernanda Montenegro se apresentou durante mais de um ano com “A Cerimônia do Adeus”, uma leitura no palco do livro da renomada e revolucionária autora feminista, Simone de Beauvoir. No último dia 18 de Agosto, reuniu mais de 15 mil pessoas na área externa do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, para o espetáculo. Histórico. Como a própria, que não por menos, é a própria história de Rádio, Teatro, Cinema e Televisão brasileiros.
“Um dia a gente vai sair desse planeta. Ou vai ficar enterrado, ou vai subir às alturas e buscar uma outra transcendência. A arte é muito isso também. É ir além.” – diz, a atriz, que amanhã, vai ter agora esse não tão jovem adulto, vendo a sua merecida homenagem, no programa “Tributo”, que vai ao ar logo após “Mania de Você”, na TV Globo.