A leveza da vida antes da tempestade
Texto escrito por Pedro Camara
O dia no Leblon é belo, as crianças jogam bola, os adultos fumam conversando sobre seus trabalhos e afazeres. Marcelo encontra um cachorro abandonado -que atrapalha um jogo de vôlei- e as crianças brincam e reclamam, mesmo sem muitas preocupações. Enquanto isso, dentre os adultos, ditos como bem informados e cultos, discutem a situação calamitosa do país, com um cigarro na mão e o whisky na outra.
A sombra da ditadura se aproxima
Ao início de sua exibição o filme é isso, leve e divertido, as pessoas ouvem Gal e Gil, fazem parte da tropicália enquanto o horror acontece com quem está na luta. A família aparenta se ausentar nesse quesito após o fim do período de Rubens como político. Para além da importância musical, o longa consegue trazer uma ambiência ao que foram os anos 70 – anos chumbo e fumo- representado em uma cena em que uma das adolescentes está no carro ,em modo hippie, com os amigos antes de ser parada por algumas viaturas.
Para além da representação, a direção junto a trilha sonora e a montagem tem uma capacidade singular de estabelecer prenúncios sobre aquela história, tendo em vista que o público sabe o que está acontecendo e principalmente o que há por vir. Em dado momento, Eunice tira uma foto em família, todos estão sorrindo, menos ela que vê diversos carros do exército passando pela orla. Outro ocorrido vem com Rubens, que atende o telefone por diversas vezes para falar de negócios. Ao fazer essa brincadeira, deixa o espectador apreensivo e ao mesmo tempo ansioso pelo que há por vir- é como te contarem que seu time vai perder uma final de Libertadores ou que um amigo seu vai ser preso. A brincadeira de mal gosto te torna inutilizado, ao só poder observar seus acontecimentos.
O fim da inocência
Após muitos cigarros fumados e muita musicalidade, o filme chega a sua parte sombria. Rubens é chamado para depor, nesse momento, a apreensão do público e de Eunice é gigante, enquanto ele permanece solene ao dizer que vai só conversar com uns amigos. A fotografia quente e granulada passa a ser fria e vazia. As janelas se fecham -e os olhares que importam- a família sente medo vendo a ditadura chegar a porta de sua casa que antes do horror dava tantas festas. A atuação de Fernanda mantém-se no mesmo tom, esperando que o marido volte. Eunice é chamada para depor, assim como sua filha. As duas são levadas ao interrogatório e a partir desse momento tanto a perspectiva quanto a presença de Rubens é apagada do filme. No interrogatório fica claro a intenção de incriminar qualquer tipo de subversividade e o lema ditatorial do “Vigiar e Punir” fica cada vez mais claro.
A essa altura o que assistimos não se trata mais de um conto de uma família burguesa e sim a história de uma família destruída pela ditadura. Um pai que não aparece, os assuntos que são deixados de lado por Eunice e o medo de novas perseguições. A alegria é transformada em dor e os tragos em suspiros. O silêncio passa a ser presente num espaço que um dia fora tão ocupado, tão falado e melodioso e nós somos somente os espectadores da derrocada.
A vida depois da perda
A morte de Rubens não tem lide, não se sabe quem, como, onde e quando ocorreu. A esperança da volta pela família é nítida, o que faz parecer que seu corpo é enterrado aos poucos, assim como o do cachorro da família. Antes essa era uma família de sonhos , ou melhor, dos sonhos – o famoso “ Leblon way of life”- e agora os mesmos que viam seu cineminha à tarde tem de se despedir de toda aquela vida, sem atestado de óbito, sem dinheiro e principalmente sem sonho.
Fernanda Torres pode ser indicada ao Oscar como Melhor Atriz em ‘Ainda Estou Aqui’
A atuação de Fernanda Torres é um fenômeno à parte. Sua interpretação permeia o filme como um todo, muda como as correntes marítimas, e representa Eunice durante toda uma vida, desde a mãe cuidadosa até a mulher forte e resiliente que viria a se formar. Além disso sua atuação é solene, não fala demais e nem de menos, atua na contingência e absorve muita coisa. Eunice é um vulcão inativo acumulando lava.
As mudanças são duras e a vida passa a ser também, Eunice estuda direito, consegue a carta de óbito de seu marido, e os filhos invariavelmente crescem e tomam seus rumos. A passagem seguinte é de 2013, quando Eunice já está com mal de Alzheimer e sua família se reúne. A casa volta a ser barulhenta, mas a personagem permanece calada. Largada no meio da sala de estar, ela assiste ao noticiário que menciona a morte de seu marido, permanece intacta, todavia chorosa. Observa aquilo com olhar de quem passou pelos horrores da ditadura, e disso se lembra. Assim como Eunice, o Brasil tem Alzheimer e parece esquecer de sua memória também, largada no meio da sala. O trabalho do filme, e nosso, é estarmos aqui lembrando, para que nunca se esqueça e nunca possa voltar o que um dia nos matou