Como entender o doping nas competições de jogos eletrônicos
Para João Antonio de Albuquerque e Souza, Presidente do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD) universo dos esportes tradicionais, o combate ao doping é uma questão inegociável. Testes, protocolos e sanções fazem parte da engrenagem que garante a integridade das competições, a igualdade de condições entre os competidores e a saúde dos atletas. Mas no crescente e milionário mundo dos E-sports esse debate ainda é incômodo, e amplamente negligenciado. Existe uma ideia persistente de que a modalidade, por ser disputada em ambientes digitais, estaria naturalmente protegida de certas distorções históricas do esporte físico. Afinal, não há esforço muscular, limites fisiológicos extremos ou testes de resistência corporal, ou ao menos é isso que muitos ainda acreditam.

Pressão invisível, performance forçada
Na prática, a pressão por desempenho nos E-sports é intensa e implacável. Jogos de tiro em primeira pessoa, como CS:GO, exigem reflexos precisos, concentração constante e resistência cognitiva prolongada por várias horas. Durante competições oficiais ou sessões de treinamento, cresce o número de relatos, ainda pouco explorados pela pesquisa, sobre o uso de substâncias como Ritalina, Adderal e outros estimulantes. Não para potencializar músculos, mas para turbinar o cérebro. Em 2015, o jogador profissional de “Counter-Strike: Global Offensive” Kory “Semphis” Friesen revelou, em entrevista ao canal Launders CStrike no YouTube, que ele e sua antiga equipe, a Cloud9, utilizaram Adderall durante o torneio ESL One Katowice.
O doping que ninguém vê (e ninguém pune)
No entanto, o doping químico nos E-sports opera em silêncio. Não há exames antes das partidas, tampouco punições exemplares. Isso cria um cenário perigoso de dois tipos: o jogador que se submete ao risco do uso de medicamentos sem prescrição e o que, por princípios ou falta de acesso, compete em desvantagem. Ambos perdem. Um por colocar a saúde em risco. O outro por não jogar em condições mínimas de equidade.
Quando o problema também é o código
E há também o doping mecânico — o uso de softwares que conferem vantagens ilegítimas. Wallhacks, aimbots, scripts automatizados. Ferramentas que transformam jogadores medianos em máquinas de performance. E que, mesmo quando detectadas, raramente resultam em punições proporcionais à gravidade do ato.
O Brasil precisa se mover
O Brasil, que está entre os cinco maiores países do mundo em número de jogadores e entre os dez primeiros em receita com jogos, conta com uma Confederação Brasileira de Desportos Eletrônicos (CBDEL) que ainda carece de diretrizes claras sobre o tema. Em muitos outros países, sequer existe uma regulamentação específica. Já a Coreia do Sul, pioneira nesse campo, dispõe da KeSPA, uma entidade dedicada à regulação do setor competitivo dos games e, entre outras atribuições, ao combate ao doping nos E-Sports. Com o Comitê Olímpico Internacional avançando nas iniciativas de integração dessa modalidade ao ecossistema olímpico, a questão não é mais se haverá regulamentação, mas quando ela se tornará obrigatória, e o que estará em risco até lá.
Um desafio institucional urgente
Se as competições de jogos eletrônicos querem, e merecem, ser reconhecidas com o mesmo prestígio dos esportes tradicionais, é necessário assumir a complexidade que esse status exige. Isso inclui enfrentar seus próprios fantasmas. O doping, seja químico ou tecnológico, não pode continuar sendo minimizado como um simples “truque de jogador”. A integridade das disputas está em risco. E, mais do que isso, está em jogo a saúde física e mental de uma geração de atletas digitais que, sem o devido respaldo institucional, pode estar sendo levada ao limite, em silêncio. Portanto, encarar essa realidade com seriedade é urgente e inadiável.