Ao revisitar o vídeo-análise do Thiago Torres, mais conhecido como Chavoso da USP, sobre o celebrado filme “Ainda Estou Aqui”, uma questão levantada por ele me chamou a atenção: qual o interesse de um bilionário da família Moreira Salles em dirigir um filme crítico à ditadura empresarial militar?

Não quero entrar no mérito da crítica ao Walter Salles, diretor do filme e a quem a crítica está direcionada. Mas, mesmo sem ser o foco principal da a análise de Torres, ele evidencia a posição de privilégio do realizador do filme brasileiro de maior prestígio internacional dos últimos tempos.
É claro que a crítica presente no vídeo é inicialmente difundida a partir de questões sociais e econômicas ligadas à produção do filme. Nesse aspecto, Thiago discorre a partir da sua não identificação com a obra. Isso porque, segundo ele, o que foi apresentado está longe de transmitir a visão do povo sobre aquele período.
Ainda sobre o mesmo filme, a escritora Fabiane Albuquerque em uma coluna para o jornal Le Monde Diplomatique expressou sua opinião sobre o filme dizendo que, tematicamente, também não representou as dores de quem mais sentiu a ditadura: as favelas e regiões periféricas do país.
Evidentemente, no campo da temática há muita margem para a discussão, ainda mais por se tratar de uma adaptação. Mas e se a discussão não fosse temática, mas sim, de uma perspectiva de quem faz a obra acontecer?
Ao observar essas duas linhas de pensamento que se conectam, nota-se que a representatividade do conteúdo sempre começa na diversidade da equipe envolvida em um filme. E, sabendo disso, como deve estar a diversidade racial e de gênero nas produtoras audiovisuais que alimentam o o cinema brasileiro?
A perspectiva de quem vive o cinema
É comum produtores audiovisuais independentes do país procurarem editais culturais para a tentativa de viabilizar os seus projetos. Muitos desses editais adotam políticas de incentivo que ajudam na diversidade de raça e gênero.
De acordo com a diretora, roteirista e produtora audiovisual Carine Santos, essa política adotada por editais é extremamente importante, mas, segundo ela, é apenas o começo:
Eu acredito que só há representatividade agora, porque existem leis dentro de editais em que você precisa comprovar que 20% da equipe é feminina ou algo assim. Mas creio que, por exemplo, dentro das grandes produções como Netflix, Amazon produções, HBO Max, não existe essa coisa. A maioria das produções são compostas por homens.

Segundo Santos, por vezes, o mercado utiliza de narrativas de quem sequer participou da produção do filme e isso, na concepção da produtora, precisa ser revisto:
Para existir [representatividade no setor], é necessário que haja uma lei que garanta isso. Como essas leis se tornam cada vez mais específicas e continuam sendo essenciais, elas abrem portas para subgrupos representados, como mulheres, mulheres trans, homens trans, negros e a comunidade LGBTQIAP+. Isso acontece porque algumas leis são obrigatórias em determinados editais. Fora dessa obrigatoriedade, não há espaço. Apenas se apropriam das narrativas desses grupos e falam sobre eles, sem eles.
Segundo um relatório publicado pela Comissão de Gênero, Raça e Diversidade (ANCINE), em 2021, o número de pessoas pretas representava 6,8% da participação nos principais cargos que envolvem a produção audiovisual no país. A título de comparação, o número de pessoas brancas correspondia a 59,5% desses mesmos cargos.
Este mesmo relatório inclusive, informou que as mulheres embora estivessem numa crescente em termos de participação em cargos, tinham uma remuneração 26,1% inferior a de homens ocupando a mesma função dentro de uma produção. Quando a diversidade apresenta melhora, a desigualdade toma as rédeas do problema.
Existe um caminho
É de suma importância, reforçar a importância de políticas que garantam a diversidade racial e de gênero na produção audiovisual brasileira. Embora critérios de incentivos presente em editais ajudem na diversidade, ainda há um longo caminho a percorrer.
O reconhecimento e valorização de profissionais de diferentes grupos devem ser parte de um esforço contínuo para transformar a estrutura do mercado. Além das políticas públicas, é fundamental que grandes produtoras e plataformas de streaming assumam um compromisso real com a inclusão.

Essa mudança não pode ser apenas uma questão burocrática, mas uma questão presente em todas as etapas da produção cinematográfica. Desde a formação de novos profissionais do setor, até os criadores e executivos. Todos precisam entender que histórias autênticas e relevantes surgem quando há pluralidade de vozes e experiências na construção dos projetos.
Concordando ou não com as opiniões, a reflexão do Chavoso da USP, da Fabiane Albuquerque e até mesmo o relato da Carine Santos, prezam por histórias que dialogam com a realidade de diferentes grupos e apresentam perspectivas genuínas. Portanto, é urgente continuar a luta por um cenário onde a inclusão não seja exceção dentro da produção audiovisual, mas a regra.